Síndrome do intestino curto e falência intestinal
Maria de Lourdes Teixeira da Silva - CRM-SP 52.568
Mestre em Gastroenterologia
Especialista em Nutrição Parenteral e Enteral
Diretora do Ganep
A síndrome do intestino curto (SIC) e a falência intestinal (FI) são condições raras que podem ser confundidas por conta de alguns sintomas parecidos, mas possuem diferenças importantes. Entender essas distinções é essencial para o manejo adequado e a busca de uma melhor qualidade de vida dos pacientes. A seguir, explicaremos as diferenças entre essas duas condições.
SIC e FI: existe diferença?
Existe uma certa confusão sobre esses termos. A SIC ocorre quando parte do intestino é removido cirurgicamente e o remanescente intestinal pode não ser capaz de absorver adequadamente nutrientes e líquidos. Trata-se, então, de uma desordem da absorção que pode causar desnutrição, desidratação, distúrbio hidroeletrolítico e diarreia.1
Os alimentos são absorvidos no intestino delgado (ID) e a medida da flexura duodeno-jejunal até seu final na válvula ileocecal mede cerca de 5 a 7 metros.2 Esse é o segmento medido para determinação da SIC: a anatomia do trato gastrointestinal normal e as funções do ID. Além das funções nutricionais, o ID absorve cerca de 9 litros de água produzida no trato gastrointestinal diariamente. Aproximadamente 7 a 8 litros são absorvidos no ID e o restante, no cólon, com excreção final de 100 a 200 mL.3 Na SIC, o remanescente intestinal do segmento jejuno-ileal é menor que 2 metros no adulto, o que justifica esses sintomas descritos.1
A FI é considerada quando o remanescente intestinal é abaixo do mínimo necessário para a absorção de macronutrientes, eletrólitos e água, sendo necessária suplementação endovenosa (hidratação e/ou nutrição parenteral [NP]) para garantir boa saúde ou crescimento. Assim, os casos mais graves de SIC que precisam de NP são considerados FI.4 A SIC representa a maior parte desses casos.
Outras situações de FI incluem dismotilidade intestinal (é uma condição em que a motilidade [movimentos] do trato gastrointestinal não funciona como deveria, causando alterações na velocidade, força ou coordenação dos músculos e nervos do intestino, o que pode resultar em sintomas como diarreia, constipação, inchaço, cólicas e dor abdominal), obstrução intestinal, fístula enterocutânea (comunicação anormal entre o trato gastrointestinal intestino] e a pele, permitindo que o conteúdo do intestino vaze para fora do corpo. É mais comum como complicação após cirurgia abdominal, mas também pode ocorrer devido a infecções, doenças inflamatórias intestinais, trauma ou outras causas) ou enteroatmosférica (caracterizada pela comunicação anormal entre o ID, a pele e o ar atmosférico, resultando no contato inadequado do conteúdo intestinal com o meio externo) ou doença extensa da mucosa intestinal5 (problema de saúde que afeta a camada interna do intestino, causando inflamação e, em alguns casos, úlceras. Essa condição pode ser causada por diversas doenças, incluindo a doença de Crohn e a colite ulcerativa).
O que causa a SIC?
Muitas doenças ou condições agudas podem requerer remoção cirúrgica do intestino, como isquemia mesentérica (é uma condição em que o intestino não recebe sangue suficiente, o que pode levar a danos nos tecidos). Doença de Crohn, complicações cirúrgicas com destaque para cirurgia bariátrica, trauma, cirurgia para câncer e vólvulo são as mais frequentes.6 Nas crianças, as causas são diferentes.
A SIC é uma doença rara?
A SIC tem incidência de 1,4 caso por milhão de pessoas na Europa ou até 30 casos por milhão nos Estados Unidos, sendo considerada rara.7,8 No Brasil, ainda desconhecemos esse dado.
Quais são as consequências da SIC?
Esses pacientes vão precisar de cuidados nutricionais mais ou menos intensivos, conforme a extensão da ressecção intestinal. Cada paciente vai ter sua particularidade de acordo com o segmento intestinal remanescente e a forma como foi reconstruído. A má-absorção dos nutrientes e líquidos pela quantidade reduzida de área absortiva vai determinar deficiências nutricionais, diarreia e desidratação, podendo necessitar de suplementos nutricionais, nutrição enteral e, em caso de FI, suporte parenteral (SP) e NP para garantir oferta nutricional adequada.9 Os pacientes com SIC e FI são divididos conforme o tipo de reconstrução e a anatomia remanescente.
Quais são os pacientes com SIC que vão precisar de SP?
Pacientes com SIC que necessitam de NP são os que apresentam FI (tipos 1, 2 e 3). Entretanto, eles podem, com o tempo, evoluir para melhora da capacidade absortiva e ir reduzindo a necessidade de NP até seu completo desmame. Chamamos essa fase de reabilitação intestinal. Em geral, no período de 3 a 5 anos, cerca de metade dos pacientes consegue reabilitar o intestino e não precisa mais de NP. Vários fatores podem favorecer a reabilitação, como o tipo de anatomia intestinal (tipo 3), o comprimento do intestino, a doença que determinou a SIC, ter cólon em continuidade, ter a válvula ileocecal ou a quantidade que ingere.
Qual é a diferença entre SP e NP?
SP é necessário na SIC com FI. O SP é a oferta de fluidos (soro para hidratação) ou de nutrientes (NP) direto na veia. Esse procedimento é sempre indicado quando a absorção de líquidos e nutrientes pelo trato gastrointestinal é insuficiente, mesmo que o paciente tenha uma dieta em que coma muito. Assim, o SP é suplementar à dieta oral e/ou enteral (dieta por sonda ou gastrostomia).11
NP
A NP é um tipo de SP que fornece todos os nutrientes necessários para completar a dieta oral e manter o paciente nutrido. A infusão desses nutrientes é feita através de uma veia de grosso calibre, porque a concentração dos nutrientes é elevada e danifica as veias finas e superficiais. A NP contém glicose, aminoácidos (menor parte das proteínas), lipídios, água, eletrólitos (sódio, potássio, cálcio, fósforo, magnésio e cloro), vitaminas (A, D, E, K, C, complexo B) e minerais (zinco, cobre, manganês, cromo, selênio e outros). Esse tratamento tem início no hospital, mas acompanha o paciente no domicílio.12 Embora a NP domiciliar seja fundamental para a sobrevivência dos pacientes com FI, não interfere no processo de reabilitação.
É necessário que a NP seja utilizada na menor dose possível, considerando que tem complicações importantes relacionadas ao seu uso prolongado. Assim, à medida que se processa a reabilitação espontânea ao longo dos anos, a NP deve ser reduzida progressivamente.13
Referências bibliográficas:
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C-ANPROM/BR/REV/0164 – Abril/2025.